À boa maneira do Tchicapa, até porque "mais velho", já o sou, sentei-me, à volta de uma fogueira, para contar outras estórias, o que os meus olhos viram, alguma vivência africana e... muita ficção.

13
Abr 11

(Continuação Texto 5/5)

 

No restaurante Catespero, perto do Hotel Luso, comi, finalmente, uma refeição, um bife, um grande bife com batatas fritas, três ovos estrelados e uma garrafa de vinho verde Gatão. Aí, conheci o Sr. Joaquim, um velhote, marcado pelas febres, respeitado e saudado por toda a gente, com setenta e sete anos de idade e 50 anos de colono.

 

Contava:

- Era tão fácil andar pelo mato noutros tempos, o comércio era abundante e havia confiança, bastava a palavra.

- Andávamos à vontade nos extremos da fronteira Leste, durante meses, com longos comboios de carregadores.

- Firmavam-se tratados de amizade com os sobas, deixando como permuta a bandeira das quinas.

 

E… fazia versos, enquanto bebia muita cerveja:

 

O foder, é para o homem,

Direito e obrigação.

Pois são todos os que fodem,

Como os que fodidos são.

 

Tu… meu rapaz,

Estás perdido

Sem paz

Estás fodido.

 

Espingardas, outras tralhas, munições e a partida para a primeira noite num “quartel” no mato, mas uma voz mais alta em brado de aviso irónico faz coro com o ronco do motor da Berliet:

Cuidado com os leões! Não os matem todos…

 

Só no dia seguinte, já em Sacassange, reparei na monotonia da paisagem, que entristecia.

 

 

(A seguir - Luena perdeu-se de amores por um Quioco)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 01:00

12
Abr 11

(Continuação Texto 4/5)

 

Depois de um longo trajeto nas camionetas de mercadorias, prosseguimos a nossa viagem nos Caminhos de Ferro de Benguela, até á Vila do Luso.

 

 

Inspirado em Agatha Christie e no meu imaginário esperava ver umas confortáveis carruagens, um restaurante onde poderiam jantar 30 pessoas em verdadeiro luxo com espelhos e cristais, empregados aprumados de farda e dourados, um menu africano e… leitos confortáveis para a noite.

 

Percorri o comboio de ponta a ponta. Não fiquei entusiasmado, nem surpreendido.

 

Passámos, dois dias em bancos de madeira, alguns longitudinais, em grandes molhos de corpos, de braços, de pernas, de armas e de porcaria, onde os líquidos de odor duvidoso, os restos das latas de conserva e outros detritos iam ficando espalhados pelo chão.

 

 

Depois de uma passagem breve em Bela Vista, Chinguar, Silva Porto, Munhango, Cangumbe e Vila General Machado entrámos na pequena estação da Vila do Luso quando o luar já tomava conta da paisagem. Destacavam-se algumas casas brancas, a ausência de mosquitos e recortes de arvoredo em ruas largas onde havia muitos europeus, que eram na sua maioria militares e seus familiares.

 

A mil trezentos e vinte metros de altitude gozava-se ali as delícias de um clima planáltico temperado e saudável.

 

Na povoação, de uma tranquilidade excecional, ouvia-se ainda, lá longe, como um eco, como um rugido, como um grito abafado pelo tambor e pelos cânticos do batuque, a repetir sem descanso:

- Chindelo chegou…

- Chindelo chegou…

 

(Continua)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 00:01

11
Abr 11

(Continuação Texto 3/5)

 

Quilómetros, quilómetros, quilómetros… de 1972, numa sofreguidão insaciável.

 

De longe em longe, um posto igual a todos os postos, uma sanzala e uma cidade igual a tantas outras. O povo aparece no caminho com saudações diferentes, uns fazem continência, outros batem no peito e as palmas, outros quase se deitam no solo e erguem as mãos numa atitude de inspiração fascista.

 

Tínhamos passado por pequenas povoações, postos solitários e isolados, dois portugueses aqui, quatro mais adiante, dez noutra terra. Vi a bandeira portuguesa, entre casas de adobe, entre outras mais modestas e entre telhados de zinco.

 

A um soba, perguntei: - Então, como correm as coisas por aqui?

Metido no seu fato de Terça-Feira de Carnaval com botões doirados, descalço e de chapéu-de-chuva, bracejou na mímica do seu complicado idioma.

 

Pensei eu: – Vai-te embora, vai para a tua terra!

Mas um intérprete de ocasião responde: - Até agora não disse nada, é só discurso.

 

Era mais um contraste de ideias, que passava a estar incluído no preço que iria, realmente, pagar, para, um dia, poder voltar a Portugal.

 

(Continua)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 00:08

10
Abr 11

(Continuação Texto 2/5)

 

E vou-me lembrando…

 

Dos meninos pálidos, recentemente retirados às mães e ao mundo europeu, numa aventura de voluntários em África em cumprimento de um encontro marcado com a sorte e com horas dolorosas de expectativa e ansiedade. Assim estávamos nós. Pálidos… por enquanto, só pela fome e pelo desconforto.

 

A paisagem era desoladora e agressiva. O capim dominava a região entre a densa mata, algumas clareiras e os raros terrenos de cultura onde os braços desiguais e retorcidos dos imbondeiros pareciam estar em atitudes alucinadas de quem protesta e se revolta contra o solo ingrato onde não havia uma única erva humilde.

 

Encontrei algumas aldeias junto à estrada.

 

Numas, a população parecia ser feliz, gritavam as mulheres, as crianças, os jovens e os velhos, quando passávamos perto. Os gritos… pareciam ir de sanzala em sanzala como o som do “tam… tam…” do batuque que comunicava de monte em monte, no alfabeto indecifrável daquele povo, com a notícia da chegada dos “chindelos”.

 

Noutras, havia um silêncio imprevisto, e em contraste lá estão junto das cubatas as mesmas mulheres, homens e crianças, parados sem que os olhos se abram amistosamente, sem uma atitude de interesse, quase sem voltarem… a cabeça, em desprezo. Estão estendidos ao sol, de costas apoiadas nas paredes frágeis, indolentes, inúteis e tristes. Têm uma expressão amargurada de infelizes.

 

Numa loja, onde entrei, vendia-se de tudo. Na parede central havia um quadro do Bom Jesus de Braga e no meio da sala um velho colono, sentado a fumar e a beber cerveja, gabou-se de episódios de outros tempos e lutas, para mim… simplesmente irreais e impossíveis.

 

(Continua)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 00:01

09
Abr 11

(Texto 1/5)

 

Já era noite alta quando chegámos para pernoitar na cidade de Nova Lisboa (hoje Huambo).

 

Não houve salvas, nem festa, nem, como em Luanda, bandos de aguerridos miúdos a receber-nos.

 

Num olhar rápido pelos arredores da estação dos comboios, vejo alguns edifícios iluminados e as ruas desertas.

 

Atiro-me para um cadeirão de verga num quarto alugado para… mais dois. Fiquei-me… sem reação, sem dar pelo tempo, a tentar recordar os muitos quilómetros (600) percorridos neste primeiro dia de viagem rumo ao Leste de Angola. Queria lembrar-me de episódios, de quadros de paisagens, de cenas, de costumes, mas… só conseguia reconstituir na penumbra, da luz mortiça e incerta de uma lâmpada, as imagens e as sensações estranhas do desconforto de um transporte… de animais mal acamados entre os taipais de uma velha camioneta.

 

 

Mesmo assim, ainda evoquei a manhã calma da partida, as cubatas ao longo da esburacada estrada, o espetáculo fantasista do sol a morrer para lá das últimas palmeiras gigantes, que se viam no horizonte, os casebres pobres em silhuetas coladas sobre um chão encarnado e um céu onde se adivinhava a agonia rápida de um clarão, que empalidece.

 

Gozando, um pouco, a minha condição de soldadinho de cristal, sacudia frequentemente o pó das botas e da farda, num ato pouco convencido e fingido de adaptação ao um meio ambiente hostil.

 

Perto de mim há quem escreva aerogramas e uma conversa em surdina acabou em evocações sentimentais:

- A minha senhora faz anos. Que pena não haver um telefone!

 

Um camarada, disfarçadamente bem-disposto, comenta alegremente:

- Mas há mosquitos, moscas, muita merda, uma bala perdida e mais mil quilómetros, bem medidos para… Com o peso dos teus cornos duvido que lá chegues!

 

(continua)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 00:01

30
Mar 11

(Continuação Texto 7/7)

 

A chegada, ao Campo Militar, em veículos de mercadorias, “gado” entre taipais, foi apenas um começo, de semanas e meses e semanas e um ano e dois e mais semanas, do jogo mortal da guerra.

 

- Caralho Alferes, isto é uma merda, é tudo um fingimento.

- São as casernas que não são, são pocilgas e tendas.

- São as camas que não são, são viveiros de percevejos e prateleiras de cimento com um cobertor.

- O vinho que não é vinho, é banga-sumo, uma mistela.

- A capela que não é capela, é um embondeiro… o Capitão é que a sabe toda!

- Com as conversas de mansinho, desenfia-se… vai-nos enrabando de fininho. Ganda… igualzinho ao… meu padrasto.

 

O Grafanil, onde pairava um ar de angústia, era infecto e incaracterístico. Representava, a síntese das fragilidades da sociedade angolana, o nível intelectual dos muitos militares de gabinete, ébrios de poder e conhecidos pelos calhaus da engrenagem, e as múltiplas contradições da guerrilha.

 

O chão vermelho da parada, onde as poucas árvores estrategicamente colocadas julgavam contrariar a fúria dos elementos, fervia aos primeiros raios solares, com a intensidade de um forno crematório.

 

Nas noites, passadas entre percevejos, mosquitos e um silêncio de morte, os corpos escorriam suor e os pés escorregavam no cimento gorduroso e húmido dos líquidos que habitualmente escorriam das latrinas.

 

Muito mais poderia narrar desta minha vivência, mas entraria em detalhes de certo modo enfadonhos, por serem demasiado comuns.

 

Mas, é importante… nunca esquecerei os momentos de camaradagem na esplanada, com uns “conversados” camarões, a solidariedade, o humor, o desconforto físico e, em certos casos, a muita revolta. Foi ali, com as minhas próprias forças… as internas, que comecei a aprender a resistir e a ultrapassar os fantasmas e os medos.

 

 

(A seguir - Atirados para Leste)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 00:01

29
Mar 11

(Continuação Texto 6/7)

 

Mas, havia uma outra Luanda, nos arredores da cidade, a dos musseques, o mundo da gente fugida da guerra das montanhas do Norte ou das planícies do Leste, iludida por uma vida melhor esgotada nas entranhas das ruelas escuras, fedorentas, insalubres, das fogueiras queimando excrementos e das águas estagnadas, ninho de milhões de mosquitos e de incontáveis misérias.

 

 

As inacabadas casas de madeira ou de lata não eram um mundo impenetrável para o branco, ali encontravam desejo, tesão, suor, prazer, galope desenfreado e o gozo de fazer sexo livre em qualquer lado, entrava-se e sai-se livremente e aconteciam naturalmente as uniões entre as raças, era a mestiçagem.

 

Nascia uma geração de gente mulata, onde as raparigas, quase irresistíveis, eram esbeltas e harmoniosas…

 

(pintura de Neves de Sousa)

 

Kuringa, uma cabrita, de cor “canela”, em meneio gingado como uma potra de raça, sorriso de marfim, corpo maduro ansiando parelha, linda, vestida de mini-saia com tecidos garridos e justos a realçar as formas esculturais do belo corpo já bronzeado, o ventre liso, os seios de bicos excitados, o “mataco”, que dança e até se insinua, marcado por calcinhas minúsculas e… tudo o resto… nem era preciso adivinhar.

 

(Continua)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 00:01

26
Mar 11

(Continuação Texto 5/7)

 

Noite dentro, numa rua junto à Cervejaria Portugália…

 

- Q. por aqui?

- Alferes!?

- Viemos comprar batatas!

- Batatas?

 

O companheiro, claro, riu-se.

 

- Viemos às putas.

- A primeira que encontrámos, disse que era a Josefa. - Tinha mais de cinquenta anos, mostrou-nos a perna até… à… barriga, só pintelhos.

- Depois… outra e outra… a uma, que usava óculos escuros, disse-lhe: estás a ver-me de óculos ou quê?

- Este bimbo só se ria, pirou-se, e eu… fiquei, ali parado, noite escura, com uma puta de óculos de sol a olhar para mim.

– São 50 escudos do puto por uma mamada!

- E... que tal?

- Porra meu Alferes… uma vergonha, era um paneleiro, isto já é a guerra… posso morrer na merda, ficar sem pernas ou sem pila, mas não quero entrar na minha terra, esticadinho no caixão, só a arrotar a colhões de preto.

 

(Continua)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 00:01

25
Mar 11

(Continuação Texto 4/7)

 

Havia, sempre, muita gente no centro da cidade, na Marginal, no Cais do Porto, nas Ingombotas, na Maianga, na Vila Alice, na Vila Clotilde, na Cidade Alta… a respirar um ar húmido, que tornava tudo pegajoso, e que entrava pelas narinas como um bafo inebriante e erótico, vindo das fornalhas daquele clima tropical onde o desejo fervia, fervia sem parar.

 

O entardecer rápido agitava cafés, cervejarias e esplanadas enquanto o sol se envolve num largo turbante vermelho para número final do seu belo espetáculo de todos os dias.

 

 

A noite era igualmente morna, húmida e pegajosa entre as águas calmas e deslumbrante da baía de Luanda. Os majestosos edifícios iluminados, encimados por reclames multicolores, o edifício do Banco de Angola, os andares do Banco Comercial de Angola, os grandes edifícios dos hotéis, o edifício de apartamentos da indústria do prazer, o “treme treme” (local muito frequentado por belas morenas, que tornavam tudo mais fácil, mais atraente e sedutor, e pelos militares em férias ou regressados do mato), no porto de Luanda repleto de navios, e nas várias boites onde havia espetáculos de variedades e de striptease de categoria duvidosa.

 

(Continua)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 00:01

24
Mar 11

(Continuação Texto 3/7)

 

Na Mutamba apanhei um “machimbombo”.

 

 

Fui dar uma volta pela cidade. Encontrei, um deserto. O comércio fechado, as ruas vazias, os táxis em fila, silenciosos e parados, sinaleiros sem trânsito, dormitando tranquilamente, até que a cidade volte a si… é que do meio-dia às catorze e trinta, Luanda defende-se do calor. Fecham as farmácias, as barbearias, as lojas, as repartições públicas, os consultórios e até os quiosques. É um ato de hibernação regulado pelos sons no forte de S. Miguel que anuncia a uma hora, momento da passagem da mesa do almoço para o cadeirão de verga onde se lê o jornal e se dorme… uma sesta.

 

A minha hora do almoço foi passada, estrategicamente, na estrada de Catete junto ao Jumbo. Era o local escolhido para o descanso do motorista ou… do tropa que em 1963 tinha sido retirado de Macedo de Cavaleiros para ir defender Cabinda.

 

A nossa aproximação começou com um deduzo…

- Deduzo que és um recém-chegado a África!

- Sim, sou tropa, cheguei de Lisboa, vou para o Leste.

- Vais precisar de tempo para aprenderes o que esta terra tem para nos ensinar.

- Nunca esqueças! Não andes mais depressa do que o teu anjo-da-guarda puder voar… coisas de África… quando te passarem os fulgores da juventude e perceberes que o homem não é omnipotente, acreditarás!

- Na guerra, que acontece nas terras para onde vais, mata-se e morre-se. - Quando regressares, que não seja entre cal e chumbo, estás enfermo da violência psicológica, dos anos roubados e da solidão, mas o espírito permanece encantado, vagueando perdido, saudoso e prisioneiro dos horizontes míticos.

 

Mas... o acordar do povo parecia ser rápido, o “machimbombo”, uma comprida camioneta em marcha lenta, já ia cheio… pretos, brancos e mulatos.

 

(Continua)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 00:01

23
Mar 11

Continuação (Texto 2/7)

 

A minha integração, no espírito africano, aconteceu, logo, na cidade de Luanda, o orgulho do Império.

 

O dia começava cedo, num trabalho lânguido misturado com o lazer e a prática corrente da sesta.

 

Num intenso calor carregado de humidade e de mosquitos, a vida parecia preguiçosa, embora as alienadas gentes, idas do “Puto”, antes da guerra, invadissem tudo, abanando a “árvore das patacas” num saque que parecia urgente. Os nascidos na terra, esses olhavam-se incrédulos e confusos, perguntando frequentemente, porquê tanto trabalho.

 

Bem à portuguesa, os chamados colonos tinham filhos, casavam-se, eram felizes na terra de adoção. Mantinham ali o seu dinheiro e investiam na vida profissional como um cidadão na terra natal.

 

Havia gente de toda a espécie, aqueles que tinham trocado toda a riqueza, na santa terrinha, por uma carta de chamada, documento, original na diplomacia portuguesa, imprescindível à imigração dos sonhadores, os portugueses de primeira, os que se achavam altos funcionários cheios de importância e os intelectuais de esquerda, tacitamente contra o colonialismo, mas não abdicando de tudo o que era bom.

 

No mundo urbano mais central, quase restrito aos brancos, novos-ricos, rodeados de criados, perdidos em vaidades, a guerra no mato, impiedosa, noticiada diariamente, era ignorada… até um anormal movimento de helicópteros, sobre a cidade, não conseguia agoirar um fim de tarde de lazer ou uma revista local acabada de sair, cheia de fotografias de bailes, festas sociais, moda e automóveis, tipo americano.

 

Ninguém se apercebia da morte eminente.

 

(Continua)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 01:09

21
Mar 11

(Texto 1/7)

 

Estava uma calma madrugada, no dia 5 de Fevereiro de 1972.

 

À hora em que a natureza começava a mostrar-se com toda a sua exuberância, vi do ar, a Costa Africana em pleno cacimbo do amanhecer onde o verde, o calor e a fertilidade de uma terra encarniçada se misturavam entre capim e árvores.

 

O sol nascia nas costas do avião dos TAM (Transportes Aéreos Militares).

 

Tudo, ou quase tudo, parecia ser tão irreal, o mar, um grande rio, a floresta, uma pequena aldeia, e algumas palhotas isoladas rodeadas de frondosas árvores.

 

Hoje, estou feliz por ter desfrutado dos cenários naturais de uma Angola que pela distância e pelo imenso território ainda estava a salvo do meu mundo, dito civilizado.

 

A nobreza dos animais nas chanas, quando procuravam a água. O rugido cavernoso do leão, à noite. As plantas que curam ou fortalecem. O secretismo dos feitiços. A jovem, fruto silvestre, corpo de gazela, olhos luzindo promessas de desejo e seios fazendo tilim… tilim… com as missangas, que se oferece por prazer, nua numa esteira, aiué... aiué... em noite escura. Os batuques e as fogueiras onde silhuetas e sombras se deleitam em negros desejos. Enfim, foram muitos meses, a viver, em plena mata, entre dois panos de tenda, num… num choque indescritível, que ainda arrepia, entre medo e respeito.

 

Foi este fascínio e esta África que me permitiram, hoje, olhar a natureza de outra maneira e estar mais atento a tanta beleza.

Foi aquele mundo e aquela imensidão que moldaram a minha mentalidade, libertaram o meu espírito e me ensinaram a desprezar as ninharias.

 

(continua)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 14:54

15
Mar 11

(Continuação Texto 7/7)

 

Despertei ao som da voz de um militar da Força Aérea Portuguesa, “a nossa hospedeira de bordo”, anunciando que o pequeno-almoço ia ser servido.

 

Já passavam trinta minutos das seis da manhã.

 

Endireitei-me bruscamente na cadeira e não vi, ao meu lado, a mulher gelatinosa, as belas coxas a passarem no corredor… afinal tinha sido um sonho, mas quase tão real porque muito do que eu vi em sonho aconteceu mais tarde, talvez os pormenores não tenham sido assim, mas foram muito semelhantes.

 

Por volta das sete horas, quando foi servido um pequeno-almoço, à base de fiambre, pão, manteiga, croissant, café com leite, compota, geleia e mais qualquer coisa com ovo, estávamos muito perto de Angola, já se via o mar muito bem e a altitude era reduzida, sobrevoávamos a orla marítima, formada por retalhos onde o verde da vegetação contrastava com uma terra avermelhada, e os arredores de Luanda com uma extensa zona de bairros pobres e, mais adiante, junto ao aeroporto, a cidade onde já havia alguns edifícios modernos.

 

 

(A seguir - Da Costa Africana ao Grafanil)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 14:24

11
Mar 11

(Continuação - Texto 6-7)

 

Os deuses da floresta tropical tinham descido até nós carregando o seu bafo afrodisíaco.

 

(autor, pintor Neves de Sousa)

 

As coxas que me enfeitiçaram durante a viagem tornaram-se dengosas, deixaram-se acariciar entre carnes macias e rijas… um fruto moreno a cavalgar a vida, a uivar à lua, despida e montada sobre os elementos naturais, numa explosão de emoções a romperem do baixo-ventre, num sussurro contínuo, que se misturava com o aroma fosforescente irradiado por dois corpos friccionando-se, pénis e vagina em fúria.

 

A mulher gelatinosa, a cheirar a azedo, olhou em volta.

Não era o que estava à espera.

A sua bexiga dava sinais, as suas roupas cheiravam para lá do que era razoável e ali estava perdida no mais selvagem ambiente. Meteu-se à picada, por entre capim e a densa floresta, à procura… quando uma leoa, atraída pelo cheiro, a recebeu de garras abertas e com a grande boca cravada no peito aberto, lhe comeu os órgãos, que ainda há pouco estavam ocultos pela gordura e pelos seios fartos… da morte.

 

(continua)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 00:01

09
Mar 11

(Continuação - Texto 5/7)

 

Mas, com o aparecimento do rápido pôr-do-sol africano, lá bem ao longe… puum, puum, puum… no silêncio de uma noite envolta num maravilhoso manto de estrelas, ouviam-se os sons e o eco de tambores.

 

À volta da nossa fogueira projetavam-se enormes sombras e reinava um intrigante silêncio, entrecortado a espaços por vários e misteriosos ruídos, sem origem definida, parecendo os fantasmas errantes do imaginário das mentes de quem está numa selva.

 

(autor, pintor Neves de Sousa)

 

Momentaneamente, os tambores começam a tocar mais perto… puum, puum… puum, puum... os sons tornam-se mais claros e precisos e lá ao fundo na selva dispara um coro de vozes femininas… surgem chamas e faúlhas de todos os lados, iluminando a noite, e deusas até aqui escondidas, aparecem nuas, completamente nuas, numa tranquila audácia, seguras dos seus membros redondos, dos seios, com a cor do ébano, e dos mamilos erguidos e rígidos como lanças, as ancas que se agitavam num voluptuoso balancear de todo o corpo, em suma, belas figuras envoltas, nos pulsos, nos tornozelos e na cintura, por um material herbáceo a arder e a produzir uma chama azulada.

 

(continua)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 00:01

06
Mar 11

(Continuação - Texto 4/7)

 

- Alfa, Sierra, Bravo, tou?! - Romio, aterrámos de emergência na mata. - Dentro do avião, escondido, onde é que querias que estivesse? - Espera… diz mais depressa… estamos em perigo… sou gaaagago… tou-te a dizer… isto não é civilizado, “ora, se te fosses foder…” suspirou!

 

Enquanto alguns protestavam contra o caricato da situação, outros descalçavam-se, tiravam a roupa e gozavam com prazer a temperatura, os aromas, a vegetação luxuriante e as águas cristalinas do rio. Nas horas que se seguiram, o encantamento da descoberta cobriu todos os outros sentimentos. Todos falavam, entre eles, de formas doces ou amigáveis, mas nenhum se calava ou prestava atenção aos perigos.

 

Quando se está, pela primeira vez, numa floresta, acho que se fica, sempre, com dúvidas, será melhor olhar para o ar, para o chão ou para a vegetação. Há os sons infinitos da selva, que parecem ser de pássaros e se descobre que são cigarras, mas que finalmente eram macacos e o chão, onde se põe os pés, repleto de manta morta onde se abrigam cobras e a própria guerrilha, num presságio de morte.

 

(continua)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 00:01

05
Mar 11

(Continuação - Texto 3/7)

 

Lá fora, a noite continuava medonha e o gelo já estava agarrado à janela. Vou para a guerra, “Filhos da Puta” nem na morte me facilitam a vida.

 

O avião mergulhava em todos os poços de ar, baloiçava e rangia, a mulher ao meu lado estava enorme, gorda e mais gelatinosa continuava a vomitar o tal líquido verde e viscoso com cheiro a azedo e as coxas das hospedeiras libertas de trapos acessórios pareciam mais belas, mas estavam perdidas entre os avanços e os recuos das luzes que se acendiam, o 12B, 32F, 57C… mas um mergulho mais fundo, origina vários gritos e um intenso cheiro a peidos.

 

Imediatamente, a voz do comandante fez-se ouvir:

- Senhores passageiros, em virtude da tempestade e do mau funcionamento do motor esquerdo, a nossa rota vai ser desviada de Luanda.

- …até melhores condições de voo, o avião vai aterrar de emergência numa clareira da mata dos Dembos.

 

Protestos, gritos, palavrões… histeria geral.

 

- Por favor, apertem os cintos e endireitem as cadeiras!

 

(continua)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 00:01

04
Mar 11

(Continuação - Texto 2/7)

 

O avião, transformado, continuava a oscilar entre as nuvens muito frias.

 

Ao meu lado, no 53E, algo gelatinoso e gordo também oscilava para lá e para cá. Era uma mulher, que me fazia agoniar quando pegava no seu saco do vómito, e quando de olhos muito abertos fazia sair um líquido verde viscoso. Depois, entre um cheiro azedo enrolava o saco, ajeitava-se e derretia-se suavemente entre banhas.

 

As hospedeiras, embrulhadas em curtas mini-saia, andavam como o avião, sem rumo certo, tontas e hesitantes, numa situação, que propiciava alguma liberdade para espreitar e desejar as esbeltas coxas e um ou outro rabo, deliberadamente, menos tapado.

 

- Por favor, aperte o cinto e endireite a cadeira!

- Lamento senhor, mas são as normas na emergência!

 

Não ouvia nada… embora profundamente enjoado e a cabeça a latejar, continuava enfeitiçado por aquelas coxas, por isso sorri, estava de pau feito. Mostrei-me muito agradecido e tal forma perdido de desejos, que até as nuvens se afastaram por momentos da nossa viagem.

 

A hospedeira apercebendo-se da situação, endireitou-se, ajeitou o pano que trazia à cintura e colocou em prática o seu olhar profissional.

 

Voltou mais tarde sem aquele olhar castrador, para me dizer: - Militares são militares, por detrás deles há outra coisa… já estava sem tesão, sorri, novamente, e não respondi.

 

(continua)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 00:01

03
Mar 11

(Texto 1/7)

 

Estávamos no dia 04 de Fevereiro de 1972, no Aeroporto em Lisboa, numa aerogare da força aérea, Figo Maduro.

 

Eram 23 horas, de uma noite muito fria, escura e… triste.

 

Com tudo muito iluminado e nítido à nossa volta, entre momentos de boa camaradagem, de espanto e de alguma descontracção, fizemos um razoável percurso a pé, até ao avião.

 

Poucos tinham visto um Boeing 707 de tão perto. Era todo branco com uma risca azul ao meio e uma cruz latina vermelha no bojo, junto às janelas, entre as asas e a porta de acesso.

 

Organizados, subimos as escadas e entrámos deslumbrados.

 

Já no ar, com o espectáculo de uma Lisboa à noite a perder-se de vista, passou-se, rapidamente, de um Oceano Atlântico cheio de brilho para um ambiente de nuvens muito escuras.

 

De madrugada, no meio de uma grande tempestade tropical, o avião era sacudido grosseiramente entre grandes deslocações para baixo e para cima. Lá fora, via-se perfeitamente como se fosse dia e as nuvens eram rasgadas frequentemente por enormes clarões. As extremidades das asas vibravam.

 

Para me proteger da luz dos relâmpagos, baixei a persiana da pequena janela, ajeitei-me na cadeira e adormeci como se não tivesse consciência, como se o vazio se tivesse apoderado do meu espírito fazendo-me esquecer aquela agonia familiar da partida para a guerra.

 

A imagem do real voou e fui pousar sobre o horizonte do irreal.

 

(Continua)

 

Carlos Alberto Santos

 

publicado por Alto Chicapa às 00:01

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